Ontem quando eu emborcava uma dose de conhaque no Ver-o-Peso encontrei com um velho amigo. Ele estava mudado, certamente, já fazia cerca de sete anos que não nos víamos. Mas o que mais me surpreendeu fora quando Carlinhos pediu para que o barman lhe servisse uma cerveja.
- Olá, senhor Álvares Rocha – saudou-me ele enchendo seu copo. - Quanto tempo não é? Estás tentando o suicídio ou estás com dor de corno mesmo? Olha a cirrose, meu chapa.
- Cara – eu disse surpreso. – Tu não eras crente?
- A igreja é um comércio, meu amigo – respondeu-me ele sem rodeios. – E a fé é a mercadoria.
- Por que tu dizes isso, Carlinhos? – perguntei com sincera dúvida.
- Eu fui pastor por dois anos, Álvares.
E ele me contou que estava casado e tinha uma filha. E que trabalhava como professor de Física e que estava ganhando uma grana doida. Depois me contou como se tornou pastor e conheceu sua esposa.
Ele naquela época andava de amasso com uma garota do coral de jovens. Segundo ele, Gabriela era uma jovem bonita, de grandes olhos esverdeados, pernas grossas, sorriso angelical e uma doçura inexplicável. Supôs que eu a conhecesse. Eu respondi que não. Carlinhos na época era o líder do grupo de mocidade, por isso tinha uma cópia da chave da igreja. Ele não tencionava ficar a sós com Gabriela ali numa daquelas salas da igreja, onde os jovens ensaiavam e os novos convertidos tinham suas lições bíblicas aos sábados, entretanto, precisou voltar à congregação após o ensaio do grupo para pegar algo que tinha esquecido. “Sabes como é difícil esconder o tesão que uma saia desperta, não é Álvares?” Perguntou-me ele maliciosamente. “Sei”. Respondi. Gabriela também não colaborava em nada para que Carlinhos controlasse sua vontade louca de lhe levantar a saia e lhe possuir por trás. Tanto que ela o beijou de forma diferente e ao percebê-lo excitado cuidou de roçar sua frente a frente dele. Então foi aí que aconteceu. A igreja depois toda soube e deu um estrondoso escândalo. Carlinhos teve que assumir a garota e arrumar um emprego para arrumar o do leite da criança que já estava a caminho. Passaram-se alguns anos e a igreja foi esquecendo o incidente, tanto que Carlinhos já era obreiro e até pregava em alguns domingos. O pastor gostava das pregações do rapaz e o aconselhou a se formar em um seminário teológico. E assim Carlinhos fez. Um irmão como ele conseguia levar a congregação às lágrimas com uma simples explanação bíblica e, conseqüentemente, os levava a abrir as carteiras e as bolsas. Após assumir a congregação, o pastor Carlos já não se expressava como outrora, agora, seus sermões além de calorosos e emocionados eram metódicos. Era como se o seminário tivesse lhe dado o poder de ir ao inferno e esbofetear Satanás. Ele se achava um super-homem. Mas logo perceberia que não passava de um estúpido fantoche nas mãos de uma autoridade maior: o pastor-presidente. Carlinhos acreditava que a igreja estava preocupada com a assistência aos mais carentes, a propagação do amor de Cristo pelo mundo e ao diálogo com os irmãos católicos a fim de os salvar de sua idolatria. Mensalmente o pastor-presidente convocava uma reunião com os pastores responsáveis por congregações na cidade. Carlinhos teria sua primeira lição de igreja naquele dia.
- Eu não quero saber como – esbravejava o pastor-presidente aos pastores subordinados. – Mas eu quero fechar o caixa mensal da igreja no limite estipulado para cada bairro. Temos gastos mensais com água, luz e aluguel, senhores. Como vamos ganhar o nosso dessa maneira? Os senhores precisam me ajudar para que eu possa ajudar os senhores. Intensifiquem as campanhas. Isso gera uma boa receita.
- Com licença, pastor – levantou o braço Carlinhos.
- Sim?
- Concordo que devemos nos preocupar em levantar a soma dos gastos, mas a soma restante nos deveria direcionar para a assistência dos irmãos carentes de nossa congregação. Por exemplo, se em cada congregação…
- O pastor ainda é novato e jovem. Ainda não entende alguns procedimentos internos – interrompeu o pastor-presidente visivelmente ofendido. - Temos que ganhar o nosso, pastor Carlos, pois não somos relógios para trabalhar de graça.
- Jesus Cristo não cobrava nada para falar aos pecadores.
- O senhor é Jesus Cristo, pastor?
- Não.
- Eu também não sou. Então se mantenha em seu lugar.
Carlinhos estava chocado e decepcionado. Ele praticamente endeusava o pastor-presidente daquela denominação evangélica espalhada em todo o país. Não era possível ele estar falando daquela maneira. Para maioria das pessoas igreja é sinônimo de Deus, Jesus Cristo. Se Deus é onipresente, ou seja, estar em todo lugar, por que diabos acreditamos que só podemos encontrá-Lo dentro de uma igreja? Por isso que quando um fiel perde a fé na igreja conseqüentemente perde a fé em Deus. Carlinhos perdeu a fé em sua igreja e logo perderia a sua fé em Deus.
Aquele assunto me trouxe a baila um curioso episódio que ocorrera quando Carlinhos e eu, ainda freqüentávamos a mesma congregação.
Deus sempre me pareceu algo fantasioso e distante. Agora dentro da igreja eu procurava entender quem Ele era. Por isso minhas leituras bíblicas foram intensificadas naquela época. Carlinhos tinha me dado um bíblia e me falava de muitas coisas de Jesus e de Seu infinito amor pela humanidade. Que deveríamos seguir o exemplo de Nosso Senhor e amar ao nosso próximo como se fosse a nós mesmos. Mostrou-me nos Evangelhos a oração do “Padre Nosso” e me incentivou a recitá-la de joelhos antes de dormir. Isso espantaria os espíritos maus que eu via e ouvia à noite, e me aproximaria de Deus. Eu também teria que freqüentar a igreja para me fortalecer mais na presença do Senhor. Carlinhos era um jovem extremamente religioso naquela época, mas seu fanatismo às vezes assustava. Eu não imaginava qual punição ele queria que o pastor aplicasse aos dois adolescentes sodomitas que foram flagrados por algum irmão linguarudo dando umazinha no banheiro da congregação.
- Álvares – dizia-me ele com gestos exasperados e voz alterada. – É o cumulo! Onde já se viu dois homens praticado um ato abominável daquele e ainda por cima dentro da casa de Deus?
- Existi outros lugares para se fazer isso – eu respondia. – E o banheiro da igreja não é o lugar mais indicado.
- E o pior é que o pastor está mais preocupado em abafar o caso do que puni esses dois baitolas.
- Não julgue para não ser julgado, Carlinhos.
- Deus irá puni-los! Ele é amor, mas também é justiça. Ninguém zomba de Sua casa e sai intacto.
- Então deixa Deus cuidar do caso.
Se estivéssemos na Idade Média e Carlinhos tivesse autoridade de condenar alguém ao suplício da fogueira, com certeza, os dois rapazes do banheiro seriam os primeiros a torrar. Bom, o desafortunado casal homossexual não teve a sorte que Carlinhos viria ter mais tarde, e foram expulsos da igreja sem nenhuma chance de casamento e, principalmente, bebês.
- Qualquer dia desses, eu te apresento minha mulher, Álvares – disse-me Carlinhos no final de seu relato e já se arrumando para sair.
- Acho que não será uma boa idéia, Carlinhos – respondi em tom de brincadeira. – Sou pegador e não respeito a mulher do próximo.
Carlinhos riu a valer e me deixou pagas mais algumas doses. Pensei que deveria pelo menos ter pedido o telefone dele.
(Capítulo 45 do romance "Correndo atrás" - Walter Rodrigues, lançado em 2009 pela Editora Multifoco, Rio de Janeiro.)