quinta-feira, 21 de maio de 2009

Ganhando o meu pão


Tia Maria tinha uma amiga que era amante do dono de uma padaria.

- Te arruma bem arrumado, tira essa barba – falava-me minha tia ressaquiada passando-me um papelzinho amassado. – E vai aqui neste endereço amanhã às nove horas da manhã. Já está tudo certo. Diz que tu és o rapaz que a Sandy indicou.

- Tudo bem, tia. Obrigado.

Guardei o endereço no bolso.

A padaria era imensa. Eu fiquei admirado com a quantidade de fornos, mesas, maquinário, doces, salgados e pães. Havia cinco setores de trabalho: os confeiteiros, os padeiros, os embaladores, os serviços gerais e os vendedores ao balcão. Eu fui designado para o setor dos padeiros. Eu desejava trabalhar no setor das embalagens.

- Eu sou o Alberto – apresentou-se um senhor baixinho de cabelos negros e rosto sacana. Sou o padeiro-chefe. Coloque este jaleco, está touca, está máscara e lave as mãos. Tem uma pia logo ali. Depois me procure que eu vou te arrumar o que fazer.

- Certo – assenti.

E eu coloquei o jaleco, a touca, a máscara e lavei as mãos. Eu me sentia uma porcaria de um médico com aquele jaleco e máscara brancos. Olhei para o amplo espaço e percebi que todos usavam tal vestimenta. Senti-me dentro de um maldito hospital. Desejei ardentemente fugir dali.

- Certo, rapaz – falou-me logo em seguida o padeiro-chefe. – Agora me diga o seu nome.

- Álvares – respondi.

- Tens cara de professor – ele disse. – Vou te chamar de Professor. Agora vá com Rodolfo. Vocês vão ensebar formas.

- Tudo certo, chefe.

E seguimos para um extenso corredor de formas de pão de forma.

- Professor – falou-me Rodolfo. – A parada é o seguinte: tu untas as formas do lado esquerdo do corredor, e eu a as do lado direito. Veja como eu faço e preste bem atenção porque eu não vou mostrar de novo. Entendeu?

- Entendi.

E ele foi até um dos fornos e trouxe uma forma cheia de gordura vegetal derretida. Depois ele pegou uma flanela escura de sujo e a ensopou na gordura. Então ele esfregou a flanela sobre as partes internas da forma, ele tinha prática e rapidamente estava ensebando outra.

- Agora tenta aí, Professor – sugeriu-me ele.

E eu tentei. Peguei a flanela sebenta e enfiei dentro da forma com gordura vegetal. Senti a temperatura morna da gordura, e a espalhei pela forma paralelogramo.

- É mais ou menos assim - falou-me Rodolfo. – Com o tempo se pega a prática.

E ele partiu para o seu lado e começou o serviço. Eram tantas formas a serem ensebadas. Tentei me diverti com a coisa. Comecei a encarar o serviço das formas como se fosse um jogo. Rodolfo era o meu oponente. Eu precisava vencê-lo. O problema era que os jogos sempre acabavam me enfadando rapidamente. Eu não gostava muito de jogos. Por isso eu nunca fiz questão em ter um videogame. E como se Rodolfo estivesse lendo os meus pensamentos, ele disse:

- Vamos apostar uma grana, Professor? Quem chegar primeiro no fim do corredor leva.

- Estou em desvantagem. Tu és no mínimo cem vezes melhor nisso do que eu.

Ele se sentiu orgulhoso ao ouvir tais palavras. Era muito evidente tal sentimento nele naquele momento. Assim funcionavam as coisas. Se um cara é melhor do que o outro em determinada função, como a de ensebar formas, por exemplo, ele se eleva à condição de ser supremo. Eu escrevia melhor do que uma porrada de escritores da minha cidade, e por isso me achava grande coisa. Certamente existiam escritores mil vezes melhores. Talvez minha escrita não valesse porra nenhuma. Mas eu me sentia superior a todos os outros seres humanos, um privilegiado, um guru, ou melhor, um deus.

Passamos a manhã inteira naquela função medíocre. Rodolfo terminou o seu lado e veio ajudar-me a terminar o meu. Depois disso o horário do almoço. Não se podia sair da padaria para almoçar fora. O dono trancava todo mundo e só lá pelas três horas da tarde ele reabria. Enquanto isso, nós ficávamos trabalhando. O lugar onde comíamos era um espaço não muito grande e próximo demais do banheiro dos funcionários. Peguei minha marmita e desci a colher no arroz, feijão e peixe assado. Depois bebi um pouco de água e sentei-me num canto para descansar. Não havia muitas cadeiras e as que haviam estavam sendo ocupadas pelos confeiteiros. Por isso, os padeiros e os embaladores estavam sentados no chão. Eu percebi que os padeiros não se davam muito bem com os confeiteiros. Os confeiteiros eram sérios demais, em contra partida, os padeiros, eram demasiados palhaços. E o padeiro-chefe comandava o circo. Os embaladores eram neutros. O pessoal do balcão podiam sair para almoçar e só retornavam às três horas. O pessoal dos serviços gerais só apareciam quando todos saíamos.

- Espia aí essas bocetas enormes, Professor – falou-me Alberto atirando sobre minhas pernas uma revista pornográfica.

Olhei. De fato, se aquilo não fosse efeito de computador, aquela boceta devia ser uma mutação, um aperfeiçoamento da espécie.

- Aposto que ele nunca viu uma boceta ao vivo – comentou Rodolfo.

Todos sorriram a valer. Até os confeiteiros. Menos eu. Resolvi não deixar barato.

- Como não, Rodolfo? – respondi tranquilamente. – A senhora sua mãe, com toda aquela boceta devorando o meu pau, seria algo difícil de se esquecer.

Risadas estrondosas.

- Cara, eu vou te arrebentar! – esbravejou Rodolfo partindo para cima de mim como touro brabo.

- Calma porra! – interveio Alberto segurando Rodolfo. – Tu sacaneias com o cara e não se responde na brincadeira? Se tu não sabes brincar, caralho, não brincas, porra!

- Ninguém tava mexendo com a mãe aqui, seu Alberto – lamentou-se Rodolfo. – O senhor sabe que a minha velha faleceu faz alguns meses... Eu vou moer esse filho da puta lá fora!

- O patrão não quer saber de brigas nem aqui dentro e nem fora daqui entre seus funcionários – falou o confeiteiro-chefe, um senhor de face rosada e olhos azuis.

- Isso mesmo, porra! – reafirmou o padeiro-chefe. – Se ele souber de briga entre vocês dois, ele vai foder a cartola de vocês.

Rodolfo não me esperou na saída. Ele não queria perder seu emprego. Ele tinha mulher e filhos para sustentar. Meus dedos estavam todos feridos devido ao contato com as formas. As veias e os ossos de minhas pernas doíam. Eu estava todo moído.

E assim passaram-se dois dias. Eu estava esgotado. Eu não conseguia acompanhar os padeiros nas tarefas. E desde meu incidente com Rodolfo, eu havia sido colocado de canto. Sendo que, Alberto não me dava mais funções e nem me ensinava como no início. Éramos observados diariamente em nosso setor de trabalho por várias câmeras de vídeo. O patrão assistia as fitas no final do expediente. E assim, no meu terceiro dia de trabalho, um jovem apareceu para trabalhar com os padeiros. Ele tinha uma vantagem gigante em cima de mim. Ele tinha uma experiência de dois anos como padeiro. Não havia como competir com ele. Alberto o conhecia. Vizinho seu. Eu estava com os dias contados e me tornei indolente nas funções. Sentava-me pelos cantos e comia salgados. Certa vez um dos padeiros me disse:

- Quem vai te contratar não é o Alberto. São as câmeras. Então procura fazer alguma coisa. Não espera te darem funções. Corre atrás do que fazer, rapaz!

Eu fiquei muito puto com o dito padeiro. Quem ele pensava que era para me aconselhar? Por acaso eu não sabia da existência daqueles indecentes “olhos de vidro?” Eu estava pouco me lixando. Eu sabia qual seria o meu destino ali na padaria, e eu não queria ser dispensando. Isso feriria o meu ego.

Por isso, resolvi não voltar ao trabalho no dia seguinte.



(O texto faz parte do romance "Feiras", de minha autoria, ainda inédito)

Um comentário:

Eu disse...

Olá!
estou aqui através do orkut da CBJE.
É um prazer conhecer seu blog e seus textos.

Um abraço carinhoso

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