sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Visita da Mamãe

Seis horas da manhã. Acordo-me. Sonhei que Isaías e eu éramos confundidos com polícias. E assim nos arrastávamos pelo chão na tentativa de escapar de rajadas de balas no bairro Guamá. Antes, sonhei que Vitória e eu estávamos dentro de um ônibus lotado de neonazistas alemães.
Minha cabeça latejava um pouco. Litro e meio de vinho barato tomado num suspiro. Infelizmente não havia mais nem uma gotinha. Olho-me no espelho. Sinto-me com duzentos anos.
Lavo meu rosto e escovo os dentes. Abro a janela e observo a estreita e enlameada rua. A manhã está cinza e ameaça desabar o céu sobre as nossas cabeças. Sacolas de lixos nos cantos dos becos e nas frentes das casas. Alguns lixos estão espalhados pelo meio da rua. Obra de algum cachorro desordeiro. O caminhão de lixo não passou no dia previsto. O resultado era aquele pós-guerra.
Sinto leves dores na barriga que logo se expande, fazendo o ir a privada uma necessidade irreversível.
Pego o meu caderno de anotações e sento-me no trono a escrever e a cagar. Antigamente eu gostava de ler nessas circunstancias.
Depois deixo o caderno e a privada de lado, e me concentro a ajuntar meu lixo. Certamente o caminhão passaria hoje. Surpreendo-me com a quantidade de garrafas de bebidas vazias. E assim tento enfiar na marra a minha mais nova garrafa vazia dentro da sacola. Por fim consigo. No entanto, o gargalo de plástico fica exposto do lado de fora. E é ali mesmo que eu faço o laço na sacola. O gargalo ficou tal como aqueles “picões” da alta sociedade com suas gravatas borboletas. Depois abro a porta e vou até a entrada de um beco próximo. Meu pé afunda, como de costume, numa poça e se cobre imediatamente de lama. Por certo, de leptospirose eu não morreria mais. Deixo o meu lixo junto dos outros. Ainda fico olhando para ele durante algum tempo. Um orgulho danado toma conta de mim. Sem dúvida alguma ninguém tinha o lixo mais bonito do que o meu. Com gravata borboleta e tudo.
Volto para minha toca.

- Nossa! – exclamou minha mãe sentando-se junto a minha mesa redonda, servindo-se de café. – Meus sapatos estão todos enlameados. Que sufoco pra se chagar aqui!
Uma manifestação ali perto do Maguari me prendeu. Saí de casa ainda iam dá dez horas! Um bando de filhos da puta que não tem o que fazer interditaram a pista. Um palhaço ainda veio me criticar quando eu reclamei da manifestação. “É direito deles se manifestar”. – Ele me disse. – “Se pelo menos estes filhos da puta ficassem com o terreno era bom. Mas eles fazem toda essa confusão pelo terreno dos outros, e quando chega na hora eles nem ficam, nem precisam. Isso tudo é pra eles venderem depois. A polícia tem é que meter a porrada nesses vagabundos, isso sim”. Eu respondi pra ele. Ele ficou calado. A gente que precisa trabalhar tem que ser prejudicado pelos bonitinhos?
Então ela abre uma sacola de supermercado e tira uma embalagem de leite desnatado, um pacote de pães e uma pequena bandeja de queijo fatiado.
- Quanto lixo jogado pela rua – continuou ela mais descontraída. – Bem aí na entrada desse beco eu vi um lixo com uma gravata borboleta. Na verdade era uma garrafa de vinho com um laço no gargalo.
E ela se riu um pouco e depois disse:
- Uma pessoa que faz uma coisa dessas só pode ser retardada.
Então ela calou-se por um minuto, e ficou a matutar alguma coisa. Depois me olhou seriamente e perguntou:
- Álvares aquele lixo é teu?
Eu respirei fundo, encostei minha cabeça na parede e suspirei:
- Sim…
E aí ela ficou muito irritada. E aí ela berrou pra caralho. E aí eu me concentrei no volume baixo das composições de Vaughan. Eu não gostei de Vaughan.
Então minha mãe se acalmou e bebeu mais café. Ela gostava muito de café. Eu também.
- Que diabos de música é essa que não tem letra? – perguntou-me ela.
- Clássica – respondi.
- Paraste de escutar músicas em espanhol?
- Não. É que às vezes eu prefiro ouvir músicas clássicas. Elas são superiores a tudo. Se algum dia alguém escrevesse um livro como Chopin compôs suas coisas, esse livro seria grandioso.
- Resumindo: tu não gostas de músicas nacionais – sentenciou minha velha.
- Eu gosto de Cazuza, Renato Russo, Chico Buarque, Leoni e tantos outros brasileiros igualmente geniais.
- Cazuza e Renato Russo foram duas bichas-loucas – respondeu-me ela.
Preferi não responder tal comentário.
Ergo-me, vou até o aparelho DVD e troco de compositor. Vaughan me era um chute nos bagos. Passo para Liszt, um dos meus prediletos. Liszt conseguia ser fúnebre e ao mesmo tempo vivo; triste e ao mesmo tempo alegre; cinza e ao mesmo tempo colorido. Ele tinha estilo.
Depois minha mãe puxou outra sacola. Ela adorava andar com sacolas. Isso me incomodava muito. Eu odiava andar com sacolas plásticas nas mãos. Então ela puxou da sacola um jornal, e o atirou sobre a mesa.
- Tu sabes que eu nunca suportei a ideia de tu trabalhares naquela feira. Aquilo não é vida pra ninguém. Arrume um emprego de verdade. O trabalho informal não te oferece garantia nenhuma. Leia os classificados, pois há empregos na cidade. Tu tens é que levantar esse teu rabo da cadeira e correr atrás, porque ninguém vai bater na porta te oferecendo emprego. As inscrições da UFPA já estão abertas. Tu deverias tentar o Vestibular.
Depois dona Carmem olhou para as horas e disse erguendo-se:
- Já vou indo, meu filho. Está no meu horário. Tu tens alguma coisa pra almoçar?
- Tenho – menti.
E ela meu deu um beijo no rosto, e eu dei um beijo no rosto dela.
- Vê se tu paras com essa bebedeira – falou-me ela a porta. – De cachaceiro eu já estou farta! Já basta aquele lá em casa.
E assim minha mãe seguiu, desviando-se das poças e dos lixos, rumo a parada de ônibus.

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