quarta-feira, 3 de novembro de 2010

O PRIMEIRO PORRE A GENTE NUNCA ESQUECE



No céu azul salpicado de nuvens brancas, o sol furioso do mês de julho. Verão amazônico. A cidade inteira dava um jeito de escapar. Os destinos eram os mais variados e logicamente dependeria do bolso de cada um. Só o que não valia era ficar em Belém torrando. É claro que haveria algumas pessoas que não teriam outra opção, mas escapariam nos finais de semana.

Na Ilha de Cotijuba em Belém, havia charretes e bondinhos, na verdade eram tratores puxando vagões confeccionados em latão, que muito de longe lembravam bondinhos propriamente ditos. No entanto, todos chamavam aquele transporte de bondinho. Na ilha havia muitas praias e muito verde. Um lugar fantástico para quem buscava paz e sossego. Meu primo Henrique e eu esperávamos o bondinho na fila. Estávamos querendo curtir a Praia do Vai-Quem-Quer, última praia da ilha. Na mochila iam dois pacotes de biscoitos de chocolate e uma garrafa de litro e meio de vinho barato.

A viagem de bondinho era lenta, devido às condições da estrada de terra. A paisagem nos enchia os olhos de vegetação tipicamente amazônica. Algumas casas à beira da estrada esburacada e muitos búfalos pastando. Os búfalos eram animais que transmitiam força e beleza.

- Alguém aqui sabe qual é o melhor amigo do homem? – perguntou um bêbado para todos.

Ninguém respondeu nada.

- Ora! É claro que é o boi. Porque o homem leva chifres, mas o boi carrega!

O bêbado além de ser um chute nos bagos ainda era metido à comediante.

E assim a viagem prossegue por entre a sombra das árvores e as piadas sem graça do bêbado. Mais casas, mais búfalos, árvores infinitas, bares, restaurantes, campos de futebol, uma estação elétrica a óleo diesel e placas indicando os nomes das praias antecedentes a Praia do Vai-Quem-Quer. Do lado oposto, outra placa indicava a entrada para as “Ruínas do Engenho”, antigo presídio do Estado conhecido por abrigar detentos que sofriam torturas até a morte.

Por fim, chegamos.

Seguimos por uma rua até praia. A maré estava cheia e as ondas estrondosas nas areias fofas da praia. O vento soprava impetuoso, mas você nem percebia. Tudo era tão harmonioso e exato. Até as músicas dos bares eram mantidas em um volume civilizado. Mas seria impossível para Henrique e eu sentarmos para consumir naqueles estabelecimentos. Éramos dois duros numa praia de preços altíssimos. Encontramos uma árvore de copa generosa e raízes acolhedoras, e ali nos alojamos. Abri a mochila e tirei a garrafa de vinho e tomei um bom gole. Henrique olhou-me, sorriu e correu para dentro das águas furiosas e cristalinas.

Com um pouco mais de 16 anos, estatura mediana e porte esbelto, Henrique tinha a pele clara, grandes olhos e cabelos castanhos. Um adolescente alegre e comunicativo a primeira vista. Um rapaz inteligente, de mente obstinada, mas um pouco preguiçoso. Naquela época ele era fã de rock’n roll, e queria aprender a tocar guitarra para ser tão bom e famoso quanto o guitarrista de sua banda favorita. Henrique era o filho mais velho do meu tio paterno.

Henrique saiu das águas, parou perto de mim, estendeu a mão direita em minha direção e disse de modo imperativo:

- Álvares, me passa um gole aí!

Henrique nunca havia tomado um porre na vida, mas ele continuasse dando goles daquela maneira, certamente, essa realidade seria mudada.

Então meu primo sentou-se ao meu lado em cima da raiz. E enquanto eu dava um gole, ele dava um que valia por cinco. Passaram-se alguns minutos, por certo, e ele estava rindo a toa e falando mais e mais alto do que o habitual. Depois ele começou a rolar de um lado para o outro na areia branquíssima para logo em seguida disparar para dentro da água. Eu corri atrás dele e mergulhei de cabeça naquele rio abençoado enquanto as ondas continuavam espocando na praia.

- Eu nunca me senti tão feliz e tão leve em toda a minha vida! – exclamou a todos os pulmões, meu primo Henrique.

Sim, ele já estava bêbado, e não havia mais vinho. Eu precisava ficar feliz também. Por sorte, ainda tínhamos cinco reais, que na verdade era para comprarmos alguma coisa para comermos. Mas quem poderia pensar em comer quando o que mais se queria era beber? Por isso, compramos outra garrafa de vinho vagabundo.

Mas quando a felicidade finalmente começou a operar dentro de mim, meu primo, começou a me contar de suas dores mais profundas. Logo depois ele começou a chorar. Chorou bastante me narrando entre soluços seus sentimentos em relação a seu pai João. Ele se sentia desprezado e mal-amado. Achava que seus pais gostavam mais de seu irmão do que dele. E tudo que ele fazia para agradar não era valorizado. Eram somente cobranças, críticas e injustiças.

- Ele nunca me falou: “filho eu te amo”. Uma vez tava passando um filme de um pai e um filho – reclamava-me Henrique com a face bastante vermelha de tanto chorar –, e o pai abraçava o filho e dizia que amava ele. Fiquei muito emocionado com a cena e olhei pro papai, mas ele se levantou do sofá e saiu da sala. Nunca vi um homem tão frio assim.

- Eh, - eu tentava apaziguava – calma, macho. Tio João te ama muito. Ama tu e o teu irmão, igualmente. Eu também te amo. Tu és um irmão pra mim. Só que o titio não é uma pessoa dada a sentimentalidades dessa forma, Henrique. Ele um homem durão e reservado em seus sentimentos. Escuta isso: quando se ama alguém de verdade é com os gestos e atitudes que se prova, e não com palavras melosas e frases sem originalidade. Tu tens que parar de ver mais estes filmes americanos, ou melhor, tu tens que parar mais de ver televisão.

Época difícil para qualquer um de nós. Quem já passou sabe. Qualquer coisinha vira um bicho de sete cabeças. Eu também já havia passado por essa fase. Fase que deixa feridas difíceis de curar.

Aconteceu de nós torrarmos nossas passagens de volta com mais uma garrafa de vinho. Resultado: aproveitamos que a maré estava vazando, e seguimos a pé pela praia por cerca de 9 kilometros em direção a Praia do Farol, que ficava no extremo oposto da Ilha de Cotijuba, para de lá caminharmos até a casa de minha mãe, onde estaria nos esperando já muito preocupada, minha irmã Vitória.

O sol morria dramaticamente no horizonte. Tão dramático e vermelho quanto a face de Henrique. Caminhávamos lado a lado por sobre as areias das praias que antecedem a Praia do Vai-Quem-Quer. Pernada doida, exaustiva para qualquer um, menos para Henrique e eu, que seguíamos flutuando numa outra áurea. E assim seguíamos em frente, bebendo daquele péssimo vinho, pois em semelhantes crepúsculos de gente e de dia tudo parece mais leve, mágico e maravilhoso.

Belém, julho de 2010.

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