segunda-feira, 14 de abril de 2008

O Acidente

VASSILI KANDINSK 387 x 411

Alguma coisa o abatia naquela manhã. O canto monótono do bem-te-vi nos portes de iluminação pública, o sol surgindo por detrás das casas e dos edifícios, enquanto uma repentina brisa balançava os seus longos e despenteados cabelos. Álvares não entendia essa angústia tão desproporcional que lhe consumia a alma. Mas talvez entendesse.
Aqueles imensos olhos castanhos, tão distantes, mais distantes naquela manhã; seus longos cabelos negros, vez ou outra caiam sobre sua fina e parda face. A barba estava por fazer, dando-lhe um aspecto sofredor e doentio. Estatura mediana, introspectivo, terceiro ano do ensino médio e uma vida ainda tão curta, mas que lhe causava um enorme tédio e desencanto.
Fechou as janelas do quarto. Escolheu uma roupa qualquer. Arrumou-se. “Feriado de que mesmo?” Indagou-se. Pouco importava, aliás, no Brasil são tantos os feriados. Saiu sem tomar o café da manhã. Comprou uma carteira de cigarros e uma garrafinha de 600 ml de cachaça. “Dane-se o mundo!” Pensou acendendo um cigarro e guardando a cachaça na mochila, pois tomaria na praça Batista Campos.
As angústias sempre atormentaram a vida do jovem Álvares. Ora sofria por não ser entendido por seus pais; ora por achar o mundo injusto e não ter como mudá-lo. Mas naquela manhã a angústia outrora costumeira, tomava proporções titânicas. Era como se o mundo escapasse de seus pés e agora ele caísse num abismo infindável. Tudo parecia está fora do normal e o mundo todo reclamava a sua saída. O presente e o passado se misturavam na tela de um artista quaisquer. E o futuro lhe era incerto, inatingível.
Gritar? Dizer o que sentia? Não. Para quê se expor? Saberia explicar o motivo de sua inexplicável angústia? Enfim chegara na praça. Sentou-se num banco e observou as pessoas que por ali passavam. As alvas garças desciam na expectativa de pegar algum peixe nos verdes lagos artificiais. Um homem alto e louro tirava fotos dos coretos e dos lagos. Um pai ensinava a filha andar de bicicleta e mais adiante algumas pessoas passeavam com seus cachorros, enquanto outras suavam correndo ou fazendo abdominais...
A cachaça descia queimando-lhe a garganta. Álvares estremeceu. “Eitá!” Exclamou. Acendeu outro cigarro, cruzou as pernas e fumou. Um enorme prazer invadiu todo o seu dormente corpo e logo os seus mesquinhos problemas desapareceram levados por um redemoinho de fumaça e goles de cachaça. Era como se cada gota de álcool tivesse o poder de transformar cada gota de lágrima reprimida, em uma intensa e pulsante sensação de paz mesclada a uma felicidade desenfreada.
Como entender essa angústia que viera tão de repente e o jogara ali naquela praça na companhia da cachaça e dos cigarros? "Por que não levantava a cabeça e continuava lutando como todos faziam?" O mundo era um redemoinho de lama que o afundava em dor. "Por que não passou no vestibular?" "Não se preparara o ano todo para esse fim?" Indagava-se dando longos goles na bebida. "Por que Pati havia rejeitado o amor que tanto queria dá?" "Por quê?!" "Por quê?!" "Por quê?!" E a bebida descendo como água. Já nem sentia mais o ardor, a angústia, o corpo. Só um inexplicável ódio. Ódio de si mesmo? Talvez.
A garrafa de cachaça estava vazia, e dos cigarros, só um restava. Álvares levantou-se. Tudo estava girando. Um incontido desejo de gritar tomou-lhe conta. Gritou. O mais alto que podia. Álvares já não sentia, já não pensava, já não sofria. Berrava frases desconexas, insultava, corria de um lado para o outro; rodopiava, cantava. Os guardas se aproximaram sem perceber que o jovem bêbado ajuntava uma enorme pedra que, por sorte quando lançada, não os acertou. Álvares saiu correndo, tropeçando em suas próprias pernas, gritando uma antologia de palavrões.
Enquanto os guardas ensaiavam uma perseguição, Álvares, sem se dar conta do perigo, atravessou em disparada, esgotando todo seu léxico sujo, a movimentada Travessa Padre Eutíquio.
Freadas bruscas, buzinadas, gritos. Uma kombi acerta, tentando frear, o jovem Álvares.
***
Era mais uma daquelas manhãs, em que o bem-te-vi canta melancolicamente nos postes de iluminação pública e os primeiros barulhos de trânsito intenso se fazem ouvir nas casas do centro da cidade enquanto o vento entra pela janela de um quarto insuportavelmente limpo e branco, tirando as cortinas para dançar.
Acordei todo engessado em um quarto terrivelmente limpo de um hospital. Senti como se todos os ossos de meu corpo estivessem sido quebrados. Um pensamento me veio a cabeça e, mecanicamente, verifiquei se os meus dedos mexiam.
"Ufa! Não estava paraplégico", pensei.
Precisava me recuperar rapidamente, pois não poderia suportar, conscientemente, o absurdo de estar em um hospital dividindo o mesmo espaço com médicos borçais e enfermeiras servis.

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